Tradução x Versão II: esclarecendo pontos importantes

Olá pessoal,
Achei por bem deixar a série de posts para quinta-feira (amanhã não conseguirei postar) e continuar nossa conversa sobre Tradução x Versão. Prometi à Isabel que responderia ao comentário dela de ontem por aqui . Ela diz:
“não entendi por que não fazer versoes. e se a pessoa gostar de escrever em inglês, qual o problema? nao entendi por que nao fazer versoes, por favor me explique melhor. algumas vezes quando trabalho nao fica legal eu devolvo o dinheiro mas adoraria estudar mais e fazer versoes por que é o que eu gosto, adoro escrever em ingles”.
Vamos aos esclarecimentos, então (hora de pegar um cafezinho 😉 ):
1- Gostar de escrever em inglês praticamente nada tem a ver com traduzir um texto para o inglês. Ambos usam o registro escrito em uma língua comum – o inglês – e só. O “escrever em inglês” é seu. Você se compromete apenas com você mesmo. Seu texto é o original, ou seja, não se baseia em nenhum outro e comunica um pensamento ou uma opinião pessoal, seja para você mesmo (em um diário, por exemplo), seja para outra pessoa (em uma carta ou um e-mail comercial, por exemplo).
2- Já traduzir, como atividade profissional, implica dever com o autor do texto original. O texto não é seu, a mensagem não é sua. Você não está realmente escrevendo, no sentido de produzir conteúdo. Está apenas transmitindo a mensagem de uma outra pessoa – seu cliente, em outra língua. Ou seja, escrever um texto é criar uma mensagem. Traduzir um texto é veicular a mensagem de um terceiro em outro idioma.
3- Certamente o tradutor precisa gostar de escrever, o que não significa, necessariamente, gostar de criar um texto. O “gostar de escrever do tradutor” é gostar de lidar com textos e palavras, ter habilidade para interpretá-los nos idiomas com os quais trabalha, fazer uso correto da gramática e nunca deixar de estudá-la, ler muito para saber escrever melhor ainda. Isso quer dizer que esse “gostar” exige estudo e disciplina, o que o tira da categoria “hobby” e o insere na categoria “profissão”.
4- Supondo que uma pessoa goste de escrever (criar textos), ainda assim não é garantia de que será um bom tradutor. As habilidades do tradutor não estão apenas concentradas na construção de um texto, mas em muitas outras práticas necessárias a essa atividade profissional. O tradutor precisa fazer pesquisas muitas vezes detalhadas e aprofundadas sobre assuntos que não conhece bem (e também saber onde acessar as informações), ter um conhecimento geral consideravelmente vasto para não cair em armadilhas tradutórias, conhecer bem a cultura do idioma estrangeiro, cuidar da fluência e da coerência da tradução sempre pensando no público-alvo, estar inteirado com a tecnologia atual (não precisa ser um hacker, mas precisa conhecer bem suas ferramentas de trabalho), fora toda a parte comercial, como captar clientes e fazer networking.
5- Agora falando especificamente de versão. Por mais que uma pessoa conheça muito bem um idioma estrangeiro, ela nunca será falante nativa daquele idioma (com exceção de indivíduos bilíngües, aqueles que foram criados ouvindo e falando dois idiomas concomitantemente – e que, mesmo assim, nem sempre serão bons tradutores). Isso significa que um falante de português que aprendeu inglês jamais terá a mesma fluência e entendimento das pequenas nuances da língua inglesa como um americano ou um britânico. Ele terá aquela fluência do estrangeiro que fala uma segunda língua, ou seja, do brasileiro que sabe se comunicar em inglês, que fala e escreve bem, mas que produz um texto ou participa de uma conversa com o “sotaque” de sua língua materna, o português. Se você der uma pesquisada, vai ver que alguns livros e páginas na internet falam sobre “os erros mais comuns cometidos por estudantes de inglês”, os quais, no fundo, mesmo um profissional não está totalmente livre de cometer. Isso porque cada povo entende a língua e a cultura de formas distintas e isso fica bem claro em seus discursos. Por exemplo, por que será que em português falamos “interferir em”, mas em inglês é “interfere with”? E por que, de vez em quando, pipoca um texto com “interfere in”? Saber essas pequenas sutilezas é que vai distinguir os bons dos maus tradutores. E é por isso que fazer versão é complicado, porque são sutilezas que não nos são naturais, exigem olhar treinado, estudo e muita prática. Por isso, nunca é demais repetir: traduzir/verter não é apenas transpor palavras de um idioma para o outro.
6- Não que seja proibido um falante de português passar um texto para o inglês. Só que a atenção e o cuidado devem ser redobrados. Como vimos ontem nos comentários da Tradutores/Intérpretes BR, o mercado aqui no Brasil tem muita demanda por versões, mas não tem número de nativos suficientes para realizá-las. O tradutor brasileiro que se comprometer a fazê-las deve estar ciente de sua responsabilidade e, de preferência, contar com um revisor. Assim, poderá garantir a qualidade de seu trabalho e atender às necessidades de seus clientes.
7- Isabel, se você quer se dedicar ao ofício de tradutor, precisa encarar essa atividade como profissão e não como passatempo. Imagine que você compra uma blusa e, quando chega em casa, percebe que está com defeito. Você volta até a loja querendo uma blusa igual, porém sem defeitos, afinal você escolheu aquela loja porque gosta muito da marca. Mas o vendedor diz que não pode consertar sua blusa nem lhe dar outra nova e acaba devolvendo seu dinheiro. Como você se sente nesse tipo de situação? Você perdeu seu tempo indo até a loja (que não percebeu o defeito na peça) duas vezes (para comprar e para trocar) e a loja não conseguiu solucionar seu problema, resolvendo que é melhor você gastar seu dinheiro em outro lugar. Se fosse eu, nunca mais voltava na loja. Com o tradutor é a mesma coisa. Quando um cliente seu recebe a tradução e vê que ficou ruim, ele está fazendo o seu serviço. É você que tem que prezar pela qualidade de seu trabalho, não o cliente. E se ele não entende inglês? Imagine que ele, que não sabe uma palavra de inglês, pede para você verter o resumo de um artigo que deseja publicar em uma revista científica internacional. O artigo (que, tudo dando certo, poderá ser seu próximo trabalho) será aceito com base apenas nesse resumo. Se você fizer uma versão ruim, prejudicará a carreira de seu cliente e todo o trabalho que ele teve escrevendo o artigo terá sido em vão (além de você perder o que seria seu próximo trabalho). É como se você se produzisse toda para uma festa e não visse o defeito da blusa, saindo com o sutiã (ou coisa pior) aparecendo. Quero dizer, a responsabilidade do tradutor não é nada pequena. Se você pensar que os tradutores traduzem bulas de remédio, manuais de máquinas pesadas e perigosas, manuais de instrumentos cirúrgicos, etc., perceberá que não é exagero. Um erro na tradução e uma pessoa pode perder um braço, tomar uma medicação errada ou até morrer.
8- Além disso, você nunca conseguirá se firmar no mercado se seus clientes precisarem devolver seu trabalho, pois dificilmente eles lhe procurarão novamente. Cliente não dá em árvore e uma hora você se verá sem nenhum. Portanto, se quer seguir esse caminho estude, como você disse (inclusive nunca deixe de aperfeiçoar o português, sua primeira língua). Estude muito e tenha sempre consciência de suas limitações. Quando receber textos, leia e avalie se terá condições de vertê-los. Não é errado dizer não, como eu disse ontem. É melhor negar um serviço e se preservar, do que aceitar o que está acima de sua capacidade e deixar seu cliente sair com uma blusa furada.
Você está ciente de sua responsabilidade?
Os tradutores devem sempre estar cientes do quanto a escolha lexical é importante ao traduzir um texto. São as palavras que escolhemos que definirão o tom da obra e que veicularão o pensamento original do autor. Esse mês pude presenciar uma situação em que essa responsabilidade do tradutor ficou (ainda mais) evidente. Todos nós, como tradutores, precisamos ter em mente o quanto somos responsáveis por nossa tradução e o quanto podemos comprometer o trabalho de um autor ao fazer escolhas infelizes.
Há algumas semanas fui assistir a uma aula com meu marido, no curso que ele faz do professor Luiz Gonzaga de Carvalho, sobre um livro de Aristóteles. A certa altura, um aluno pegou o livro-base do curso e fez uma pergunta ao professor. A dúvida não era sobre, mas envolvia um termo grego cujo significado na filosofia, ao que foi explicado, é bem específico, mas que facilmente induz a uma tradução errada se o tradutor não estiver bem atento ou não dominar realmente o assunto.
Aconteceu exatamente isso. A tradução do termo não estava correta e quem foi induzido ao erro, no fim das contas, foi o aluno/leitor, pois confundiu os conceitos determinados por Aristóteles. O professor, felizmente, já estava ciente sobre a confusão dos termos e conseguiu esclarecer a dúvida do aluno, pedindo que cada vez que a palavra X aparecesse no texto, ele pensasse na palavra Y, que seria a tradução correta. Desculpem, eu realmente não lembro qual palavra é, mas pelo que entendi da explicação do professor, o tradutor usou a mesma palavra X para traduzir dois conceitos diferentes da língua grega, sendo que a tradução de um deles deveria ser a palavra Y. Imagine a confusão que isso causa ao leitor!
Depois da aula, conversando com o professor Luiz Gonzaga, que também é tradutor e revisor há vinte anos, entramos na questão de como os iniciantes se colocam diante dos textos que traduzem. O quadro que ele me passou não foi animador. Ele contou que, quando ainda revisava traduções, ficava assustado com a falta de conhecimentos gerais e o pouco (ou quase nenhum) comprometimento com a pesquisa dos tradutores novatos, o que deixava os textos com erros básicos e absurdos. Dois exemplos clássicos que ele citou: a tradução de “The Holly Land” por “Terra Sagrada”, quando o certo é “Terra Santa”, e a tradução de “The Plague” por “A Praga”, quando o certo é “A Peste”.
O fato é que, se o tradutor não tem como saber sobre todos os assuntos, ele ao menos deve ter tino para a pesquisa. É um dos requisitos básicos e indispensáveis que se espera de um bom tradutor. Traduzir palavra por palavra qualquer um faz, mas traduzir conceitos e idéias com precisão é trabalho suado, exige pesquisa e aprofundamento por parte do tradutor. Há, ainda, certos assuntos que somente um tradutor especializado pode traduzir. Há de se ter humildade para recusar um trabalho para o qual não estamos preparados ou não temos aptidão. É uma escolha mais do que inteligente dizer não nessas horas. Porque, assim, o tradutor não queima seu filme no mercado e não compromete a obra do autor nem a compreensão do leitor.
Esses dias, li um texto muito interessante que convém indicar aqui, chamado “Tradução boa e tradução ruim”. Você pode (e deve!) ler aqui.