É possível conciliar o seu maior projeto de vida, os filhos, com o trabalho de tradução?

Rafa Lombardino*

“Menina, o que você já tá fazendo na frente do computador?!” ou “Por que você não respondeu o e-mail que eu enviei meia hora atrás?”

Essas foram as duas reações completamente diferentes que alguns dos meus clientes tiveram quando voltei a trabalhar poucos dias depois de os meus filhos nascerem. O plano original era tirar pelo menos 45 dias de licença maternidade e voltar à ativa aos poucos, em meio período, para aprender a conciliar o papel de mãe e o papel de tradutora. Não deu nem um mês…

A Marissa nasceu em setembro de 2008 e o Lorenzo em agosto de 2012. Ambos partos naturais na banheira de uma clínica-maternidade com o auxílio de uma parteira. Nas duas ocasiões, cinco horas mais tarde eu tive alta e já estava de volta em casa para dar início à recuperação, aproveitar o carinho da família e dos amigos e me apaixonar pelos meus bebês.

Mas nem tudo é um mar de rosas. Criar um pingo de gente no seu ventre exige muita energia durante as quarenta semanas (ou mais!) de gestação. Apesar do alívio imediato depois que o bebê finalmente está nos seus braços, o seu corpo ainda leva tempo para voltar ao normal. Você reaprende a andar, reaprende a se sentar, reaprende a fazer tudo que levou nove meses aprendendo a fazer diferente para acomodar a barriga crescente, os pés inchados e a lombar dolorida.

E a mente? Ah… a mente mente! Você acaba trocando o dia pela noite, dependendo do ritmo de vida imposto pelo seu bebê. Seus pensamentos até parecem bem claros na sua cabeça, mas o cansaço e a falta de sono vão acabar interferindo no seu raciocínio. Pode apostar!

Tô ficando doida? – Você abre a boca para dizer alguma coisa e já não consegue completar frases, tentando economizar energia e torcendo para que todos ao seu redor consigam ler os seus pensamentos.

Você fica frustrada quando tudo cai da sua mão, menos o bebê e o precioso leitinho. Falando nisso, se quiser aproveitar a conveniência de ter mamadeiras prontas na geladeira, você passará pelo menos umas três horas apertando a bombinha tira-leite em quatro ou cinco sessões diárias. Dica: chá de feno grego funciona se o seu objetivo for se tornar uma vaca leiteira e produzir 1,250 L de leite por dia.

Você ouve vozes! No meu caso, o Guilherme Arantes cantou no meu ouvido um dia inteiro… Não, o rádio não estava ligado e não ouço uma música dele há muito tempo, mas o cara teimou de vir cantar aqui em casa. Talvez cérebro de mãe de recém-nascido funcione em uma frequência diferente e você acabe captando essas ondas misteriosas…

Apesar de todos esses contratempos, ao contrário do que muitos pensam, cuidar de um bebê não é algo assim tão complicado. Bom, complicado mesmo é correr atrás de uma menina de quatro anos, cheia de energia, que vai para o jardim da infância meio-período às segundas, quartas e sextas, faz ginástica olímpica às terças e quintas, balé às sextas e, mesmo assim, é movida a pilhas que duram mais do que as do coelhinho da Duracell.

Criança de quatro anos já fala e a resposta para tudo é: “Não!” Tem hora para comer, tomar banho, fazer lição de casa e de ir para cama. Mas criança de quatro anos também ajuda, participa, pega paninho para limpar quando o bebê dá golfadas em cima de você e dá aquele abraço gostoso que recarrega a suas energias.

Sim, bebês dependem de você para tudo, mas logo a gente se acostuma com o ciclo: dar de mamar, trocar fralda e colocar para dormir. Se a sua recuperação também está progredindo sem sobressaltos, nas horas vagas já dá para planejar a volta ao batente.

Aproveitando as preciosas horas do dia – Sou daquelas que não consegue ficar muito tempo parada. Preciso sempre fazer algo de produtivo, então poucos dias depois de dar à luz bateu aquela vontade de ouvir o barulho do teclado de novo. Porém, levando em conta todo esse vai-e-vem físico, psicológico e emocional, é preciso acima de tudo ser honesta consigo mesma e se perguntar: “Estou mesmo preparada?”

A última coisa que você quer é voltar a trabalhar e meter os pés pelas mãos, cometer erros imperdoáveis, não respeitar o prazo de entrega e depois dizer que a culpa é das noites mal dormidas. Você precisa se conhecer, saber qual é o seu horário mais produtivo e se planejar muito bem.

Você é daquelas que cai da cama cedo e traduz umas mil palavras antes de o estômago começar a roncar pedindo o café da manhã? Ótimo! Se você foi dormir à meia noite depois de andar pela casa gastando o seu repertório de canções de ninar até o bebê finalmente cair no sono e logo acordou às três da manhã para dar de mamar outra vez, aproveite a insônia para trabalhar umas duas horinhas assim que o bebê voltar à dormir. Desse jeito, você começa o dia mais cedo e vai adaptando o horário de trabalho com a rotina do pequerrucho.

É notívaga? Maravilha! Cochile durante pelo menos uma hora sempre que o seu bebê dormir depois de estar bem alimentado e de fralda limpinha. A noite será toda sua para batucar no teclado à vontade.

Quando emperrar naquela expressão chata, que nem o dicionário ajuda a traduzir naturalmente, tire uns quinze minutos para estender um cobertor no chão da sala e colocar o bebê de barriga para baixo, assim ele exercita os bracinhos e as perninhas e aprende a levantar a cabeça, treinando para logo começar a engatinhar. Enquanto se diverte vendo o bebê desenvolvendo as suas habilidades motoras, a mente da mamãe começa a trabalhar passivamente. Diversos estudos apontam que o cérebro funciona melhor quando precisa encontrar uma solução se você deixa de pensar no problema e executar uma outra tarefa (tomar banho, cozinhar, lavar a louça, lavar a roupa, etc.)

Use os minutos que passar amamentando ou apertando a bombinha tira-leite para ler os documentos que está se preparando para traduzir, fazendo uma interpretação preliminar ao passar os olhos pelo texto original e improvisar em voz alta a tradução do que está lendo, técnica também conhecida como “sight translation”.

A propósito, muita gente acaba adotando algum software de voz para ditar traduções para o computador, já que as suas mãos vão estar ocupadas demais. Confesso que essa opção não funciona para mim, já que o meu cérebro se comunica melhor com os meus dedos do que com a minha boca, então prefiro mesmo digitar a ditar.

Não importa a técnica que funcionar para você. Assim que conseguir reservar um tempinho para o trabalho, concentre-se ao máximo e aproveite a sua produtividade sem culpa antes de voltar para os deveres de supermãe.

O seu bebê e os “bebezões” – Assim como nenhum bebê é igual ao outro, cada tradutor é único e tem as suas peculiaridades. Uma ou outra dessas dicas poderá funcionar, outras você vai descobrindo por conta própria. Mesmo assim, lembre-se de que você é uma só e que, a partir do momento em que se torna mãe, essa é a sua profissão principal.

Sim, é difícil atender às necessidades do seu bebê e de todos os seus outros “filhos” ao mesmo tempo, mas cliente bom entende, já passou por isso e, se gosta mesmo do seu trabalho e valoriza a relação profissional de anos, não vai simplesmente virar-lhe as costas.

Às vezes, até os clientes mais rígidos amolecem assim que você manda um aviso, com meses de antecedência, de que vai entrar em licença maternidade. Aposto que eles, tanto mulheres como homens, vão encher você de perguntas sobre como está passando, se já escolheu o nome do bebê, para quando está previsto o nascimento e se você promete que vai mandar fotos assim que o bebê nascer.

Já outros clientes não tem a menor empatia mesmo… Nesses casos, a melhor coisa é ser bem realista, trazer o cliente de volta para terra firme e insistir que não, não dá para traduzir cinco mil palavras de um projeto super-hiper-ultra técnico para entrega até o fim do expediente.

Se o cliente não aceitou o “não” como resposta depois de você lembrá-lo que está de licença maternidade, explicar que deu à luz há três dias e ainda não está em condições de voltar a trabalhar no horário comercial, o negócio mesmo é apelar.

Diga para o cliente que você precisa se deitar e elevar os pés para aliviar o inchaço. Não funcionou? Parta para a próxima fase: explique que não pode se sentar direito durante horas a fio porque a parte inferior da barriga ainda dói por causa do útero que está desinchando e tentando voltar ao tamanho normal depois de nove meses em livre expansão.

Não foi suficiente? Pergunte se o cliente –principalmente se for a cliente– sabia que depois do parto a mulher sangra durante até seis semanas e ainda é muito incômodo sentar para trabalhar. Principalmente se você estiver usando fralda geriátrica durante a primeira semana…

Na maioria dos casos, quando você é levada a tal extremo, essa imagem tão gráfica ajuda a colocar tudo sob perspectiva e os clientes param e pensam: “Caramba, a minha tradutora acabou de ter um bebê e eu estou aqui, pedindo o que já era praticamente impossível sob condições normais.”

Das duas, uma: ou você descobre que o projeto não era tão urgente assim e consegue negociar uma data de entrega de acordo com a sua realidade ou, então, o cliente pergunta se tem algum colega em quem confie para cuidar desse documento.

Arma secreta – Quando você estiver pronta para fazer a transição de licença maternidade para o trabalho em meio período, seja três dias ou três meses após o parto, sempre é bom ter uma “arma secreta” para ajudar você a se concentrar no seu serviço.

No meu caso, a carta que eu tenho na manga é o maridão, que é um pai nota dez: troca fralda, dá mamadeira, coloca o bebê para balançar na cadeirinha ou de barriga para baixo para se exercitar. A sua arma secreta pode ser os seus pais, sogros, irmãos, cunhados, amigos…

Receber apoio é fundamental e todos saem ganhando: você começa a se organizar e a sua companhia aproveita algumas horas cuidando do bebê. O pequenino também leva muita vantagem nessa, já que interagir com pessoas diferentes ajuda o seu cérebro em desenvolvimento a estudar expressões faciais diferentes, identificar outras vozes e memorizar as características daquelas pessoas que serão tão importantes na vidinha dele.

Acredite, conciliar as mil coisas que você precisa fazer durante o dia é possível. Programe-se e tenha como o seu fiel escudeiro um bom sistema para se organizar, seja a boa e velha agenda de papel ou o calendário do Google. O segredo é não dar um passo maior do que a perna e ser honesta consigo mesma.

Pensando em todos esses prós e contras, todo esse sobe e desce, se eu tivesse que fazer tudo de novo eu não mudaria uma vírgula sequer.

* Rafa Lombardino nasceu em Santos/SP em 1980 e se mudou para San Diego em 2002, onde mora com o marido e os filhos. Formou-se no ensino médio técnico em 1997 com um certificado profissional em Processamento da Dados e concluiu os estudos universitários em 2002, formando-se em Jornalismo. Começou a trabalhar como tradutora em 1997 e hoje é presidente da Word Awareness, uma pequena rede de tradutores profissionais criada na Califórnia em 2004, que virou corporação em 2009. Foi aprovada no exame de tradução do inglês para o português da Associação Americana de Tradutores (ATA) em 2007 e, no ano seguinte, obteve o certificado profissional do curso de extensão em tradução do espanhol para o inglês oferecido pela Universidade da Califórnia em San Diego (UCSD Extension), onde atualmente dá aulas e faz palestras sobre o papel da tecnologia na tradução. Rafa também escreve sobre tradução literária no blog bilíngue Literary News / Notícias Literárias.

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3 Respostas para “É possível conciliar o seu maior projeto de vida, os filhos, com o trabalho de tradução?”

  1. cenaless Artigos diz :

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