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Marcelo Brandão Cipolla responde aos leitores

Vocês enviaram as perguntas e o Marcelo respondeu!
Espero que possam aproveitar bem as novas dicas e conselhos que ele nos dá.

Marcelo: mais uma vez, obrigada por tudo 🙂


Tenho uma dúvida quanto ao ingresso de novos tradutores no mercado editorial. A partir do que já li sobre o assunto, um fator quase onipresente nos textos trata da credibilidade do tradutor, de sua reputação na área. Tendo isso em vista, não se torna um tanto difícil para novos profissionais adentrarem este ramo da tradução, já que muitos tradutores de reputação consolidada também o disputam?

Que é difícil, não há dúvida. Creio inclusive que a “concorrência” aumentou nos últimos tempos, pois um número maior de pessoas conhece a língua inglesa e aspira a ser tradutor. Mas tenha certeza de que sempre há lugar para quem está começando. Como eu disse, o número de bons tradutores não é grande. E quem está na área há tempo sabe que reputação nem sempre significa qualidade.

Na minha experiência como coordenador, já peguei livros traduzidos por gente muito reputada que tiveram de passar por revisão extensa e profunda para poderem ser publicados. E já aconteceu de eu ir deliberadamente atrás de gente nova para renovar o quadro de tradutores. Na realidade, alguns dos melhores tradutores com quem trabalho foram novatos cujos testes eu corrigi e aprovei.

Acho que o principal fator a afetar a disponibilidade de trabalho para os tradutores novos é o mercado editorial estar aquecido ou não. Numa fase de calmaria, de poucas traduções, é evidente que as editoras ficarão com aqueles tradutores que elas já conhecem bem – note que digo “que elas já conhecem bem”, não “que são famosos” ou “que têm excelente reputação”. Mas numa fase em que o mercado se aqueça, em que muitos livros estejam sendo traduzidos, elas tendem a se abrir para receber testes e aceitar novos tradutores de bom potencial.

Meu negócio é tradução, presto serviço para poucas editoras e não sou pessoa qualificada para dizer se o mercado está numa fase aquecida ou não. Com essa importante ressalva, arrisco o palpite de que atualmente as coisas andam meio lentas na área da tradução editorial no Brasil. Isso, a meu ver, se insere no panorama da crise econômica mundial.

Quais são as línguas que a Martins Fontes mais traduz? Ou é apenas o inglês?

Um esclarecimento: a Editora Martins Fontes não existe mais. Há dois anos ela dividiu-se em duas: a Martins Martins Fontes e a WMF Martins Fontes, para a qual presto serviços. A WMF Martins Fontes traduz principalmente do inglês e do francês, um pouco do espanhol e do italiano, um pouco menos do alemão e quase nunca do russo.

Quanto tempo em média se leva para traduzir um livro?

Isso depende do tamanho do livro. É mais fácil falarmos em quantas laudas podem ser traduzidas por dia. O tamanho da lauda varia, segundo a editora, entre 1800 e 2100 toques, com espaços, de texto já traduzido. O número de páginas do original a que essa lauda corresponde vai depender do tamanho da letra e do tamanho da mancha gráfica. Mas digamos que um tradutor experiente pode fazer, em média, umas 8 laudas por dia.

Na prática, constato que é muito difícil trabalhar mais que seis horas por dia numa mesma tradução. É claro que numa ocasião de urgência ou necessidade é possível trabalhar mais que isso. Mas não é um ritmo que se possa manter por muito tempo – não sem comprometer a qualidade da tradução e, às vezes, a saúde do tradutor.

O Sr. Marcelo comentou que “não cumprir prazo” é um erro muito grave que o tradutor pode cometer. Não existem casos em que, no avanço do trabalho, o tradutor percebe que o prazo combinado não é suficiente? Qual deve ser a atitude do tradutor se isso vir a acontecer? Isso pode queimar seu cartucho com a editora?

Esses casos existem, sim. Pode acontecer de um tradutor fazer uma avaliação errada de sua produtividade ou da dificuldade de um trabalho. Pode acontecer também de ele enfrentar algum imprevisto grave em sua vida pessoal. Nesses casos, a atitude deve ser sempre a de ter uma conversa franca com o editor ou coordenador. O pior que pode acontecer é ele começar a atrasar e não dar satisfação. Quanto a queimar o cartucho ou não, creio que isso depende da editora, do editor, de quem lida com o tradutor. Conheço várias pessoas que exercem essa função e estariam dispostas a relevar um atraso justificado.

Por enquanto a tradução editorial free-lancer ainda não é um trabalho onde as relações humanas são totalmente mecanizadas, apesar de existir uma tendência forte nesse sentido. Ainda há, sim, espaço para diálogo e transigência.

É claro também, por outro lado, que se o problema começa a se repetir aquele tradutor fica “marcado” como alguém que sempre atrasa, que enrola etc.

Tenho um amigo que traduz obras que gosta como hobby. Ele poderia oferecer uma tradução feita por ele para uma editora? Aliás, como as editoras escolhem as obras que vão ser traduzidas para o nosso mercado?

Por duas vezes fui a uma editora oferecer uma tradução minha. Em nenhuma das duas a tradução foi aceita, mas na primeira vez arranjei serviço. (Na Editora Pensamento, em 1990. Presto serviço para eles até hoje.)

Na WMF já aconteceu de pessoas proporem livros para publicação e os livros serem aceitos. Num dos casos que presenciei, a mesma pessoa que propôs o livro fez a tradução (dois livros seguidos, propostos em dois momentos diferentes!). Em outro, após avaliação, a tradução foi passada para outro tradutor e o proponente fez a revisão técnica. Resumindo, creio que não há perda em apresentar uma tradução pronta a uma editora ou sugerir a publicação de um livro. O máximo que pode acontecer é ouvir um “não”.

Sobre como as editoras escolhem as obras que vão ser traduzidas, não sou a pessoa indicada para responder, pois essa decisão cabe aos chefões. Fica aqui uma sugestão à Lorena: fazer uma entrevista com um editor-chefe ou um dono de editora, que esclareça esse mistério para nós!

O Marcelo também respondeu a um comentário feito aqui no blog:

Vi um comentário um pouco amargo no blog acerca da importância das indicações para conseguir trabalho. Esse fator é, com efeito, muito importante, e deixei isso bem claro quando disse – e repito – que a maioria dos fatores que podem facilitar a carreira profissional do tradutor dependem muito da sorte. Mas isso não ocorre só na vida do tradutor, nem somente na vida profissional. Isso é assim em todos os aspectos da vida de todas as pessoas. E a sorte num campo da vida muitas vezes vem acompanhada do azar em outro… Mas enfim: o importante a lembrar aqui é que (correndo o risco de cair no banal) a sorte favorece a mente preparada. Independentemente de sorte ou azar, todo aquele que pretenda ser tradutor profissional deve se esforçar para aperfeiçoar suas capacidades e tentar encontrar alguém – um professor, um amigo – que o oriente nesse sentido. O esforço pela aquisição de conhecimento e pelo desenvolvimento da habilidade tem um valor intrínseco que não deve ser subestimado.

E uma historinha tirada da minha experiência pessoal: nesses sete anos em que venho coordenando as traduções do inglês da Martins Fontes/WMF, em várias ocasiões chamei amigos meus que eu considerava capacitados (e que, portanto, “tiveram sorte”) para fazer traduções. Saibam que em todos os casos – 100% – houve problemas na tradução, a tal ponto que hoje, em princípio, não chamo mais nenhum amigo nem aceito indicação de amigo sem antes fazer um teste.

Entrevista: Marcelo Brandão Cipolla (III)

Oi, pessoal!

Hoje vocês leem a última parte da entrevista com Marcelo Brandão Cipolla, coordenador das traduções de inglês da Martins Fontes. Confiram abaixo as dicas preciosas para quem está iniciando na profissão, está imperdível!

E MAIS! caso vocês tenham outras dúvidas, o Marcelo gentilmente se disponibilizou a respondê-las aqui no blog. Então, não sejam tímidos e mandem suas perguntas pelos comentários, pelo formulário de contato ou então para: aoprincipiante@gmail.com. Não percam essa chance, não é todo dia que podemos trocar ideias com um profissional como o Marcelo 🙂

 

 

Você é revisor também, certo? Que habilidades um tradutor precisa ter para se tornar um bom revisor?

Desnecessário dizer que o revisor deve ter excelente domínio da língua de partida e da língua de chegada, como o tradutor. Com isso, ele pega os erros mais grosseiros, de entendimento do original. Ao mesmo tempo, o revisor deve abstrair completamente o original em outra língua e pensar no texto como um texto em português; deve avaliá-lo quanto à fluência, à sonoridade, ao ritmo. Por fim, deve ser detalhista para pegar os erros de ortografia, pontuação etc. E tem de fazer tudo isso ao mesmo tempo… Uma coisa muito importante é que ele não pode se deixar influenciar pelo texto do tradutor. Não pode se “acostumar” com o estilo dele; deve manter sempre o olhar crítico para poder pegar os erros e impropriedades.

Como funciona a revisão de um livro? Pelo que entendi, nem sempre a revisão da tradução é feita, somente a revisão do texto final em português. Quando a revisão da tradução é necessária?

Quando assumi a coordenação das traduções do inglês na Editora Martins Fontes, a regra era que o livro tivesse sempre uma revisão de tradução. As pressões do mercado mudaram isso, não só na atual WMF como também em outras editoras. A meu ver, se não fosse pela pressão econômica, o ideal era que toda tradução tivesse uma revisão. O tradutor, por melhor que seja, não é um super-homem. Às vezes ele se deixa levar pelo literalismo; às vezes está pouco inspirado, escreve pior. Às vezes padece de simples desatenção. A revisão, no mínimo, conserta essas coisas. Na prática, hoje em dia reservamos a revisão ou para os textos muito difíceis, ou para aqueles trabalhos feitos por tradutores sub-ideais ou que não estavam num bom momento. Saiba que também é difícil encontrar bons revisores. Algo que temos feito bastante é o que se chama preparação: a tradução é lida sem cotejo com o original; o preparador tem de ser um cara esperto para, além de arredondar o português, “pegar” trechos estranhos ou que fazem pouco sentido. Então essas frases, ou expressões, ou palavras, são examinadas em detalhe, desta vez com cotejo, para se determinar a solução.

Você lembra quais desafios enfrentou no início da carreira? Quais eram as maiores dificuldades?

Acho que não tive muitas dificuldades. De certo modo, para mim foi natural pegar um livro em inglês e passá-lo para o português. Mais para a frente, quando peguei trabalhos mais técnicos, tive dificuldades terminológicas, que na época eu resolvia nas bibliotecas da USP. Mas, em vez de falar das dificuldades, eu gostaria de falar sobre aqueles fatores importantíssimos que me permitiram ter poucas dificuldades iniciais no trabalho. Vou tratá-los em forma de lista:

1) Primeiríssimo de tudo, um domínio absoluto da língua inglesa. Eu tinha morado por dois anos na Inglaterra completamente inserido na vida de lá; falava sem sotaque e pensava tão naturalmente em inglês quanto em português.

2) Depois, um bom domínio da língua portuguesa. Era bom aluno e adorava fazer dissertações na escola (já ficção nunca foi o meu forte). Não me lembrava distintamente da terminologia da gramática, mas sabia escrever bem.

3) Depois, muita, muita leitura em português. Sempre fui amigo dos livros. Isso desenvolve em nós o repertório do vernáculo.

4) Depois, bons conhecimentos gerais. Trata-se de um fator essencial para a gente entender do que o autor está falando.

5) Por último, mas não menos importante, contei com o apoio de pessoas que me protegeram e me levaram pela mão, relevando e corrigindo meus erros de tradução, sempre dispostas a me dar mais uma chance, orientando-me mesmo sem eu pedir. Sinceramente, não sei como uma pessoa pode começar como tradutor, ou em qualquer profissão, sem uma orientação desse tipo. Refiro-me aqui à Mônica Stahel, da Martins Fontes, e ao Frederico Ozanam Pessoa de Barros, da Editora Pensamento, para a qual passei a prestar serviços pouco depois. O Luiz Carlos Borges, que daí a um tempo assumiu a coordenação de traduções da Martins Fontes, também me ajudou bastante.

A maioria desses fatores dependem de sorte, mas alguns deles podem ser supridos, ao menos em parte, pelo esforço. Isto é muito importante.

Como você acha que alguém que não teve experiência no exterior pode suprir essa lacuna? Você acha que essa é uma experiência essencial?

Não é essencial. O que é essencial é uma compreensão profunda, intuitiva, do uso daquela língua. A experiência me diz que existem pessoas capazes de adquirir esse tipo de compreensão pelo estudo, sem viajar ao exterior. Então, não é necessário viajar ao exterior; mas é absolutamente necessário estudar bastante o idioma estrangeiro, ler muitos livros dos autores consagrados daquela literatura, assistir a filmes antigos e modernos, conversar, se possível, com quem fala bem aquele idioma. Uma coisa preciosa, meio esquecida nesta época de predomínio da imagem e dos olhos, é fazer uso somente do sentido da audição: ouvir rádio naquele idioma, ouvir uma palestra, ouvir música, ouvir declamação de poesia. Isso ajuda muito.

Um assunto já discutido no blog foi a necessidade de os iniciantes aceitarem trabalhos de versão, pois no Brasil há bastante demanda por eles. O que você acha de um tradutor passar textos para uma língua que não é sua língua materna?

Acho que, como eu disse, ele terá mais dificuldade. Sobre esse assunto, concordo, no geral, com o que você disse nos seus posts sobre Tradução x Versão. Mas acredito também que é possível ao falante nativo de português exercitar-se a tal ponto no inglês que seja capaz de fazer versões praticamente sem erros. É algo que leva tempo, mas é possível. Nisso, conta muitíssimo o treino e a experiência de escrever em inglês, embora escrever e traduzir não sejam a mesma coisa.

Você comentou sobre o Tesouro do Tradutor, um glossário próprio. Como surgiu a ideia de compilar as soluções que encontrava?  Não seria um guia bacana para ser publicado algum dia?

A ideia de compilar as soluções surgiu naturalmente no começo da minha vida profissional. De início, eu anotava os conselhos que recebia do Fred, da Mônica ou do Luiz Carlos. Como desde muito cedo comecei a fazer revisão de tradução, anotava também as soluções interessantes, inteligentes ou elegantes que encontrava no trabalho de outros tradutores. E logo passei a anotar as que eu mesmo criava ou descobria. Trabalhando como coordenador, anoto ainda as boas soluções que meus “coordenados” propõem. Creio que esse tipo de registro, seja qual for a forma que assuma, é essencial para todo tradutor da área editorial. É algo que desde já recomendo a todos os principiantes. Eu tenho dois documentos: um Tesouro, com a tradução de palavras e expressões, e um Repertório de Soluções com a tradução de frases inteiras. A publicação desses registros seria interessante. Talvez um dia eu publique esses documentos, já mais elaborados e incrementados, num blog ou num site, por exemplo. Um exemplo de uso comercial de um bom “tesouro” desses é o livro Vocabulando, da Isamara Lando, que ajuda muitos tradutores.

Muitos tradutores iniciantes são questionados sobre qual sua especialidade. Mas tradutores iniciantes ainda não tiveram tempo de se especializar em uma área. Você acha que há um caminho para a especialização? Por exemplo, escolher uma área de interesse e tentar trabalhar nela sempre que possível? Ou esse é mais um processo natural? É problemático um tradutor não se especializar?

Na minha área é raro encontrar tradutores especializados. Para quem quer se dedicar à tradução editorial, o ideal é ter um grande cabedal de conhecimentos gerais das mais diversas espécies. Já aconteceu de eu procurar tradutores especializados em direito para traduzir certos livros. E tem sempre um ou dois para quem prefiro passar os livros de arte e arquitetura. Então, a “especialização” existe sim, numa medida módica, em ambiente editorial. Certos livros de humanas são extremamente técnicos e a tradução é facilitada quando o tradutor domina aquele vocabulário. Mas quero ressaltar que o profissional deve ser primeiro tradutor e depois “especialista” em x ou y. Um dos erros que já cometi como coordenador, e que já vi ser cometido por outros na mesma posição, foi entregar a tradução de um livro de direito, por exemplo, a uma pessoa que entende horrores de direito e conhece a língua inglesa, mas tem pouca ou nenhuma experiência como tradutor. O resultado, em 100% dos casos, foi decepcionante: uma tradução literal em que mesmo os termos técnicos, muitas vezes, não estavam resolvidos. Hoje em dia só trabalho com gente que é primeiro tradutora e depois especialista. Quando o texto é tecnicamente complicado e não há uma única pessoa que reúna os dois conhecimentos (de tradução e da área do livro), o esquema com que mais gosto de trabalhar é dar a tradução a um tradutor bom, inteligente e com muitos conhecimentos gerais e contratar um revisor técnico que se prontifique a tirar dúvidas por e-mail durante a tradução e depois faça a revisão técnica do texto em português. O investimento é grande, mas compensa quando o livro é importante. A lição que fica é: o mais importante na área editorial é ter muita cultura literária e geral. Se o tradutor além disso conhece bem a terminologia de uma ou mais áreas, ótimo. (É o meu caso, que já fiz – embora não tenha terminado – a maior parte das faculdades de arquitetura, letras e direito). Quanto à exigência de especialização feita aos iniciantes, ela só se justifica, a meu ver, no caso de certos livros que de fato são muito técnicos. Para a maioria dos livros, ela não se justifica em absoluto. O que vale é a competência do iniciante como tradutor e, não menos, sua inteligência.

Quais os principais erros que um novato comete, em termos de tradução mesmo e também de postura profissional?

Primeiro os erros de postura profissional, assunto mais simples. Não cumprir prazo é um erro grave. Não cumprir e não dar satisfação é pior ainda (por incrível que pareça, esses casos existem). Desatender a uma sugestão, pedido ou ordem do coordenador é lamentável. Não aceitar uma correção de tradução é, além de lamentável, perda de tempo. Já os erros de tradução são muitos. Terei de falar deles de forma resumida, identificando somente certas categorias gerais, sem entrar em exemplos e detalhes. O pior e o menos remediável é simplesmente não entender o inglês. O segundo pior é o literalismo na tradução. O terceiro pior, e um erro que acomete principalmente os mais novos, é usar a linguagem dos jornais e especialmente da internet, uma linguagem empobrecida e repleta de anglicismos sintáticos e semânticos em razão da má qualidade das traduções que se difundem hoje em dia. Há também um quarto erro: é o do tradutor que entende o original e escreve bem em português, mas toma certas liberdades com o texto, “interpreta-o” demais. Este erro é, a meu ver, o menos ruim, pois é o mais fácil de corrigir.

Entrevista: Marcelo Brandão Cipolla (II)

Hoje, damos continuidade à entrevista com o coordenador das traduções de inglês da Martins Fontes, Marcelo B. Cipolla. Descubra um pouco mais sobre o mercado editorial, a relação entre a tradução literária e a tecnologia e qual o melhor caminho a seguir para ser tradutor de livros. Boa leitura e não esqueça que a entrevista continua na semana que vem!

Você pode contar como é o seu processo de trabalho hoje? De que maneira o computador e a internet mudaram seu trabalho?

Segundo o meu ponto de vista, a tecnologia usada para traduzir é uma questão relacionada ao aspecto comercial da profissão, e não ao aspecto da excelência da tradução em si. A questão tecnológica é determinada pela necessidade de lucro das empresas que nos contratam e pela necessidade do tradutor de atender às expectativas das empresas contratantes quanto a prazo, modo de entrega etc. A tecnologia não tem absolutamente nenhum glamour. É uma imposição comercial. São Jerônimo traduziu a Bíblia à mão, e o mesmo fez Marpa Lotsawa com os textos do budismo indiano. Todo o desenvolvimento tecnológico ocorrido de lá para cá tem tudo a ver com a ganância e nada com o conhecimento e a excelência. Nesse sentido, o computador mudou meu processo de trabalho, mas quero crer que não fez aumentar a qualidade da minha tradução. Aliás, com a crescente redução dos prazos, espero que a qualidade não tenha mudado para pior! Objetivamente, uso o computador como uma máquina de escrever com uns recursos a mais, como por exemplo os de busca e substituição no Word – bastante úteis por sinal, mas nada que não pudesse ser feito antes, quando as expectativas de prazo eram mais dilatadas. A internet mudou principalmente o modo como faço a pesquisa terminológica. Antes, eu anotava minhas dúvidas e, a certa altura, ia a uma das bibliotecas da USP para pesquisar. De vez em quando conversava com um especialista, quer um pago pela editora, quer um amigo disposto a me ajudar. Hoje, uso basicamente a internet. Desnecessário dizer que é preciso saber procurar as fontes mais confiáveis… Além disso, existem certas dúvidas que só se resolvem com a ajuda de um especialista ou de alguém que esteja por dentro do tema. Então, não sou a pessoa indicada para falar sobre o uso dos recursos da informática na tradução (exceto, talvez, sobre como fazer uma busca terminológica decente na internet). Por outro lado, há no mercado excelentes tradutores que usam esses recursos e podem falar sobre eles.

Você recebe os livros em folhas impressas ou digitalizados?

No meu ramo, ainda costumo receber o livro propriamente dito, em papel. Ponho ele aberto do meu lado e vou traduzindo. Ultimamente tem se tornado mais comum a editora receber o livro original em pdf ainda antes de o mesmo ser lançado no exterior. Nesse caso, recebo também o pdf, o que me ajuda na hora de traduzir coisas como índice remissivo, bibliografia etc. Ressalto que todas essas “facilidades” vieram acompanhadas da concomitante redução de prazo e aumento do custo de vida, de modo que o saldo foi – zero, se deixarmos de fora os olhos doloridos pela tela… Então, resumindo, meu processo de trabalho é o seguinte: recebo o livro da editora, dou uma bela olhada para me familiarizar com ele, verifico o alcance dos meus conhecimentos sobre o tema, se for o caso falo com um especialista e/ou faço uma boa pesquisa a respeito do assunto, ponho ele do meu lado e traduzo. Trabalho com alguns dicionários: um inglês-português, alguns português-português, alguns inglês-inglês, um dicionário de regência verbal, um dicionário de sinônimos e o excelente Guia Prático de Tradução Inglesa do Agenor Soares dos Santos. Depois do Acordo Ortográfico consulto bastante o VOLP. Consulto vários dicionários e glossários especializados na internet. Tenho uma boa biblioteca em casa que me ajuda bastante, além de um glossário próprio, o Tesouro do Tradutor, com soluções que venho acumulando ao longo dos anos e que também uso regularmente.

Interessante ver sua visão sobre a tecnologia. No meu caso, uma ferramenta que vem me ajudando imensamente é o Wordfast. É muito bom para as traduções técnicas, em que os termos são bastante recorrentes. Mas imagino que para a tradução literária seja um programa, se não totalmente, quase inútil.

Faço parte de uma lista do Yahoo Grupos chamada Litterati, dedicada à tradução de literatura e ciências humanas e frequentada por tradutores de peso. Outro dia surgiu lá uma questão a respeito do uso de programas como o Wordfast na tradução literária. Vários colegas muito competentes, como a Beatriz Medina, a Malu Cumo, o Guilherme Braga e o Fábio Said, falaram sobre como usam esses programas. Vale uma consulta a essas mensagens no grupo Litterati. A discussão ocorreu entre os dias 21 e 22 de novembro de 2010. (…) De fato, o uso desses recursos na tradução editorial ainda é incipiente e muito mais limitado que na tradução técnica. Por outro lado, talvez uma memória de tradução tivesse me auxiliado quando traduzi o On Food and Cooking, um livro técnico-científico sobre culinária, que lista milhares de ingredientes e técnicas de cocção. Ressalto porém que o recurso só vale uma vez encontradas as soluções para os pepinos de tradução. No caso desse livro, isso só foi possível com a ajuda constante do chef Celso Vieira Pinto, contratado pela editora para me auxiliar na parte técnica durante toda a tradução.

É possível ler o livro todo antes de começar a traduzir? Quem define o prazo do serviço,  a editora ou o tradutor?

Eu, pessoalmente, não leio o livro todo antes de traduzir, embora dê uma boa olhada. Mas meu motivo para não ler não tem a ver com prazo. Não leio porque o trabalho de tradução é muitas vezes enfadonho, especialmente quando os livros são longos. Nesse caso, gosto de me reservar o gosto de ir descobrindo o livro aos poucos, à medida que traduzo. Creio, porém, que isso varia muito de acordo com o tradutor. Em regra quem define o prazo é a editora, mas às vezes ela incorpora, nessa definição, uma consulta ao tradutor. Atualmente tem se tornado mais comum na área editorial a prática de mandar imprimir livros no exterior, geralmente na China ou em outros países asiáticos onde esse processo é mais barato. Quando isso acontece, os prazos são muito mais rígidos e devem ser cumpridos à risca. Quando não é assim, geralmente há certa maleabilidade que permite à editora, às vezes, aumentar o prazo para poder contar com os serviços de determinado tradutor.

O sonho de muitos tradutores iniciantes é traduzir livros. Você poderia contar um pouco como é o mercado editorial para o tradutor? Qual caminho seguir para traduzir livros?

Posso falar sobre a minha experiência junto às editoras com quem trabalhei. Quando a quantidade de livros a serem traduzidos é grande, as editoras costumam fazer testes com tradutores, iniciantes ou não, para avaliar a capacidade deles. Cada editora tem seu protocolo para esses testes. Mas gostaria de ressaltar que o número de bons tradutores (me refiro sempre ao inglês-português) é muito pequeno. Embora o mercado seja aparentemente concorrido, pode ter certeza de que, quando encontram um tradutor bom, os editores e seus auxiliares dão pulos de alegria. Então, o conselho que dou aos iniciantes é o de aprimorar a competência. Encontrar tempo para fazer suas próprias traduções de treino e, se tiverem essa possibilidade, submetê-las à apreciação de profissionais experimentados. Começar traduzindo textos curtos: um conto, um ensaio, um capítulo de um livro. Estudar as traduções de grandes mestres, comparando-as com os originais. E então tentar a sorte junto às editoras.

Entrevista: Marcelo Brandão Cipolla

Marcelo Brandão Cipolla, coordenador das traduções de inglês da editora Martins Fontes, é tradutor há 21 anos. Gentilmente, ele aceitou o convite para ser entrevistado para o Ao Principiante e, a partir de hoje, você vê o resultado dessa rica conversa aqui, na seção Entrevista. Falamos sobre a área editorial e muitos outros assuntos pertinentes para nossa profissão, como tecnologia, especialização, pesquisa e mais. Vale a pena acompanhar!

Hoje, você conhecerá um pouco sobre como o Marcelo começou na profissão e o que ele faz atualmente. Não deixe de conferir a continuação da conversa ao longo das próximas semanas. Boa leitura!

 

Qual a sua história profissional – como começou na profissão e por que escolheu ser tradutor?

Escolhi ser tradutor porque me casei de improviso aos vinte e um anos e tive de sustentar minha família. Eu estava na faculdade de arquitetura, mas não me sentia seguro para trabalhar na área, além do que um estagiário ganhava (e ganha) salário de miséria. Por outro lado, eu tinha morado na Inglaterra dos 10 aos 12 anos de idade e dominava perfeitamente a língua inglesa lida, escrita e falada. Já tinha dado aula de inglês durante cerca de dois anos, mas a rotina das aulas não me agradava. Meu pai tinha traduzido alguns livros de neurofisiologia, área dele, para a Editora Ícone. Então ele me arranjou um livro para traduzir: The Construction of the Mind (A construção da mente), do neuropsicólogo soviético Alexander Luria. Para você ter uma ideia da precariedade do meu trabalho naquela época, eu escrevi a tradução à mão em papel jornal e depois a datilografei, catando milho, na máquina que minha mãe me emprestou. Meus pais haviam participado, na juventude, de um grupo de amigos que ainda mantinham contato entre si. Uma pessoa desse grupo, a Mônica Stahel, que me conhecia desde pequeno, trabalhava no departamento editorial da Editora Martins Fontes. Ela também já havia passado livros para meu pai e minha mãe traduzirem em suas respectivas áreas. Minha mãe conversou com ela, que resolveu me dar uma chance. Me passou então o livro Aspects of Antiquity (Aspectos da antiguidade), de Moses I. Finley. A Mônica gostou da tradução apesar dos pesares, achou que eu tinha potencial e passou a me dar livros para traduzir.

Há quanto tempo está na Martins Fontes? Hoje, o que você faz lá?

Traduzi meu primeiro livro para a Martins Fontes em 1989 e trabalhei para eles até 1992, mais ou menos. Estive afastado por um período e voltei a lhes prestar serviços em 1999. Em 2004, o Luís Rivera (chefe do departamento editorial) e a Mônica me propuseram assumir, sempre como free-lancer, a coordenação das traduções do inglês. Na prática, eles me passam os livros; eu defino quem vai ser o tradutor e estabeleço com ele o prazo, o estilo de tradução e certas diretrizes terminológicas; alerto-o também para as armadilhas específicas daquele texto. Acompanho o trabalho mês a mês, olhando as remessas e enviando, quando necessário, correções e comentários ao tradutor. Fico ainda à disposição dele para resolver dúvidas de tradução, terminologia e padronização editorial. Quando ele termina o trabalho, olho tudo. Às vezes peço que refaça uma ou outra coisa, e de qualquer modo faço uma revisão no texto, às vezes sumária, às vezes mais pesada. Quando um livro vai ter também revisão de tradução, faço o mesmo trabalho com o revisor. Além disso, sempre estou fazendo ou uma tradução ou uma revisão para a editora.

Que tipos de texto traduz?

Traduzo, em geral, livros de não-ficção que podem ser englobados na área de Humanas. Mas, dentro desse campo, já fiz praticamente de tudo: história, religião, direito, psicologia, linguística, filosofia, política, literatura, arte, arquitetura e até culinária. Traduzi também muitos livros para a Editora Pensamento, que podem se classificar em autoajuda, misticismo, e artes, ciências e religiões orientais. Fora isso, já traduzi vários textos daquilo que se chama “o novo paradigma nos negócios”, tanto para a Pensamento quanto para a Amana-Key.

Quais obras você mais gostou de traduzir? Por quê?

Gostei de traduzir obras sérias sobre yoga, como A Tradição do Yoga de Georg Feuerstein para a Pensamento. Gostei também de trabalhar num livro do qual só traduzi pequenas partes, mas cuja tradução coordenei e do qual fiz a revisão: O livro tibetano dos mortos, recentemente publicado pela WMF Martins Fontes. Desses livros eu gostei porque o tema me interessa. Fora isso, e apesar de não ser especializado em literatura, gostei muito de traduzir Zen e a arte da manutenção de motocicletas, de Robert Pirsig, também para a WMF. Esse me agradou não só pelo tema como também pela forma, um romance de viagem. E há outros livros que me agradaram e dos quais gosto porque achei que a tradução ficou muito boa. É o caso, por exemplo, de A história da humanidade (Hendrik Willem Van Loon, WMF); de A arte de fazer um grande vinho (Edward Steinberg, WMF); de Com Deus Não se Brinca (Julia Cameron, Pensamento); e de um livro de ciência gastronômica chamado Sobre a culinária e os alimentos, que estou terminando agora (Harold McGee, WMF).

Você costuma ler os livros que traduziu passado algum tempo do trabalho? Se sim, como é essa experiência?

Não costumo lê-los inteiros. Quando recebo o exemplar do livro publicado (é hábito o tradutor receber pelo menos um exemplar do livro), geralmente já se passaram uns bons meses ou mesmo anos desde a época da tradução. Então, eu olho o livro, leio alguns trechos, faço uma avaliação do meu trabalho, avaliação essa que é facilitada pelo distanciamento temporal. Quando o aprovo, a experiência é muito agradável. Por outro lado, às vezes encontro algo que eu gostaria de mudar, mas isso, em regra, já não é possível.

Além da área editorial, você já trabalhou com agências de tradução ou outros clientes? Já fez outros tipos de trabalho (ou tem vontade de fazer), como legendagem, por exemplo?

Nunca trabalhei com agências de tradução. Já traduzi textos para a Amana-Key, uma firma de consultoria empresarial, a serem usados nos seminários que eles oferecem para executivos e empresários. Traduzi alguns filmes para uma produtora chamada Omni Vídeo há 25 anos. Hoje tenho vontade de tentar de novo a mão na legendagem, para alternar com o trabalho na área editorial.